José Luiz Fiorin Cláudio Fonteles, autor da ação de inconstitucionalidade da lei que regula a utilização de células-tronco embrionárias na pesquisa, questionado sobre o conflito de interesses de seu engajamento cristão com o mérito da ação, rebateu, dizendo:
"A doutora Mayana Zatz, que é o principal elemento de quem pensa diferentemente da gente, tem também uma ótica religiosa, na medida em que ela é judia e não nega o fato" (FSP, 21/4/2007). Nesse caso, quem questionou o procurador, em vez de discutir os argumentos que ele propusera na ação, desqualificou-o, pondo em dúvida suas motivações. Em sua resposta, o procurador, em lugar de responder ao ataque, preferiu pôr em dúvida a credibilidade da pessoa que liderava a corrente contrária a seu ponto de vista, nesse caso, a coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP.
Esse argumento, em que não se discutem os méritos intrínsecos do ponto de vista ou da dúvida do oponente, mas se desqualifica o adversário como interlocutor sério, apresentando-o com alguém incompetente, não confiável ou inconseqüente, recebe o nome latino de argumentum ad hominem (argumento dirigido à pessoa). Essa forma de resposta dirige-se à audiência e não ao oponente. Ela busca silenciá-lo, ao pôr em dúvida sua confiabilidade.
Variantes
Os argumentos ad hominem apresentam três variantes:
a) o ataque pessoal direto;
b) o ataque pessoal indireto;
c) a apresentação de contradições entre posições do oponente ou entre suas palavras e suas ações.
O ataque pessoal direto dirige-se a qualquer aspecto da pessoa do argumentador: seu caráter, sua competência, sua honorabilidade. O que se pretende é atingir a ética do oponente, considerando-o desonesto, não íntegro, não digno de confiança. O que se busca é mostrar que alguém incapaz ou insincero não pode sustentar posições corretas ou manifestar dúvidas justificadas. Quando se diz que o adversário é desequilibrado, visa-se indicar que ele não tem capacidade de argumentar racionalmente e, por conseguinte, seu argumento não merece atenção. No ataque pessoal direto, sempre se apresenta uma característica negativa do debatedor.
O ataque pessoal indireto é aquele em que se coloca sob suspeita a imparcialidade do argumentador. Nesse caso, apresenta-se uma característica do oponente, que, em princípio, não seria negativa: filiação política, crença religiosa, etnia, alianças de qualquer natureza. No entanto, ressaltar esse atributo destina-se a mostrar o argumentador como alguém tendencioso, que defende uma pauta oculta, que tem motivações pessoais para lutar em favor de uma dada posição, que pode estar motivado por preconceitos ou por uma visão parcial. Quando se diz que alguém que critica as quotas para negros no ensino superior é branco ou que alguém que recrimina alguma atitude do atual governo é de direita, o que se está fazendo é deixar subentendido que eles têm um motivo oculto para patrocinar uma determinada causa, é questionar sua eqüidade. Uma forma de ataque pessoal indireto é deixar implícito que o outro nada tem a dizer sobre um dado assunto, porque não teve experiência pessoal sobre ele. É o argumento freqüente para rebater os pontos de vista da Igreja Católica sobre sexualidade ou sobre matrimônio: os padres são celibatários.
Posições
A terceira variante consiste em apontar contradições entre a posição atual do oponente e pontos de vista sobre o mesmo tema no passado ou entre suas palavras e suas ações. Essa variante está muito presente no debate político, porque os homens públicos têm o hábito de ter posições divergentes, quando estão no governo ou na oposição. Assim, quando um político acusa o governo de infligir prejuízo à Petrobras, ao segurar os preços dos derivados de petróleo para não alimentar a inflação, pode-se rebater sua posição, expondo que ele advogava esse ponto de vista quando estava no governo.
A lógica considera o argumento ad hominem uma falácia, dado que os atributos do argumentador não fazem suas proposições falsas ou incorretas. No entanto, ele é eficaz na discussão, quando não se tem provas consistentes para sustentar um argumento ou elas são muito fracas. Quando o governo não tem, por exemplo, como defender um ato governamental, reage a um pedido de CPI pela oposição, dizendo que se trata de manobra eleiçoeira. É o argumento ideal diante de perguntas incômodas ou capciosas, porque, nesse caso, questiona-se a pergunta em vez de respondê-la. Suponhamos que um ex-presidente do Banco Central do governo FHC perguntasse a Henrique Meirelles se ele poderia garantir que não haveria aumento dos juros numa próxima reunião do Comitê de Política Monetária. Ele poderia responder que, vinda de um ex-presidente do Banco Central de um período em que os juros chegaram a patamares elevadíssimos, a pergunta carecia de sentido. Foi o que fez o procurador Cláudio Fonteles no exemplo mencionado acima. Esse tipo de argumento é forte, ainda, para replicar um argumento ad hominem usado pelo outro. Quando se diz a um homem que apresenta uma objeção à descriminalização do aborto que só as mulheres têm direito a discutir a questão, pois o homem apresentaria, pela própria condição masculina, uma parcialidade inevitável, pode-se inverter o argumento, dizendo que as mulheres, por ter um interesse pessoal no tema, não seriam as pessoas que poderiam debatê-lo com racionalidade. Por isso, o argumento ad hominem é uma estratégia de discussão que livra o debatedor de rebater um argumento, na maior parte dos casos, procedente. No geral, usa-se esse argumento quando se está acuado num debate, quando não se tem como responder ao oponente.
José Luiz Fiorin é professor do Departamento de Lingüística da USP e organizador, com Margarida Petter, do livro África no Brasil - A Formação da Língua Portuguesa (Contexto) |